Textos críticos

Todo ideal nasce vago, de Ivair Reinaldim
MAM RJ, dez 2016


A história do Museu de Arte Moderna não necessariamente é uma narrativa estruturada em uma única linha cronológica, como muitas vezes podemos considerar. De fato, há tantas versões para essa história quantas foram as pessoas que idealizaram a instituição, habitaram seus espaços no decorrer das décadas e fizeram do MAM um marco na cidade do Rio de Janeiro. Ou seja, há tantas narrativas quanto museus, pois ele é sempre múltiplo na singularidade dos relatos e das memórias. Em meio a essa evidência, o modo escolhido por Eloá Carvalho para tecer sua narrativa sui generis partiu de um inventário de imagens de pessoas, objetos e situações que a artista identificou em meio a uma ampla investigação no arquivo da instituição e em bibliografia produzida por outros pesquisadores: um conjunto de imagens e relatos que constitui um imaginário-museu multifacetado.

Quem refere-se a arquivo, adentra o labirinto. E embora Eloá Carvalho tenha se aventurado nos arquivos iconográficos da instituição – das fotografias de mostras individuais e coletivas às de eventos variados promovidos em seus espaços, de registros dos processos de construção do edifício projetado por Affonso E. Reidy a imagens do público que frequenta os espaços do museu e seus jardins –, o método arqueológico empregado pela artista constitui-se verdadeiro “fio de Ariadne” a conduzi-la nos meandros desse território, capaz de tecer aquilo que é lembrado –  e porque é lembrado – como também o que é esquecido ou nem sempre inventariado. No entanto, cabe o alerta: o conjunto de pinturas aqui apresentado, resultante desse processo de pesquisa e alinhavo, não se resume a “história do MAM”, muito menos a retrato de personagens de um passado que insiste ou deseja fazer-se presente. Fragmentos selecionados e elaborados por processos de montagem e construção pictórica emergem desse arquivo e juntos tornam-se pontos de tessitura de uma narrativa. Guardam, no entanto, sua autonomia ao evidenciarem suas próprias histórias particulares. São imagens que ganham corpo, densidade e visibilidade, insinuando-se mais como presença revolvida do que como evidência comemorativa ou ilustrativa.

Mas, afinal, a que se refere esta exposição? Que ideal é esse em seu título que nasce vago? Um projeto de museu? Um projeto de pintura? Um projeto de arte? Ao olhar para o passado, ao revolver imagens e relatos de arquivos reais e imaginários, ao reativar memórias coletivas e individuais, ao evidenciar apagamentos e esquecimentos, ao reintroduzir esse material no fluxo das visibilidades e na tessitura de sua narrativa, Eloá Carvalho reafirma-o mediante sua existência: fala não de um museu, mas de museus enquanto visões partilhadas entre pessoas; não de pinturas, mas da pintura enquanto ato e modo de conceituar o mundo; não da arte como visão elitista, mas do papel que a mesma pode e deve assumir frente à formação e reconhecimento de um mundo em constante transformação. Se o relato reforça que “todo ideal nasce vago”, seja ele qual for, sua continuidade conclui que “é o calor humano que lhe dá corpo e consistência”. Reside aí o testemunho de seu propósito e de sua concretização.


English version

The history of Museu de Arte Moderna is not necessarily a narrative structured along a single chronological line as we might often think. In fact, there are just as many versions of the history as there are people who have envisaged this institution, inhabited its rooms over the decades, and made MAM a landmark in this city of Rio de Janeiro. In other words, there are as many narratives as there are museums, because it is always multiple in the singularity of the accounts and memories of it. In the midst of this evidence, Eloá Carvalho has chosen to weave her sui generis narrative from an inventory of images of people, objects, and situations she has identified from a wide-ranging investigation of the institution’s archives and publications by other researchers: a set of images and accounts that constitute a multifaceted museum-imaginary.

Venturing into an archive means venturing into a labyrinth. And while Eloá Carvalho has in fact roamed around the institution’s picture archives – from photographs of solo and collective shows to the many and varied events held in its premises; from documents recording the construction of the building designed by Affonso E. Reidy to images of the visitors to the museum and its gardens – her archaeological method constitutes a veritable “Ariadne’s thread,” wending its way through this terrain, weaving together things that are remembered – because they are remembered – as well as things that are forgotten or not necessarily officially recorded. Nonetheless, a word of caution: the set of paintings presented here as a result of this research and organization process cannot be seen as encapsulating “the history of MAM,” much less as portraying characters from a past that insinuates or wills itself on the present. Fragments selected and elaborated in montages and pictorial constructs emerge from this archive and become the warp and weft of a narrative. Yet they maintain their autonomy in presenting their own particular stories. They gain substance, materiality, and visibility, taking their place more as a reviewed presence than as commemorative or illustrative evidence.

But ultimately, what is this exhibition about? What is the ideal in its title that starts out vague? A plan for a museum? A plan for painting? A plan for art? By looking back, reviewing images and accounts from real and imaginary archives, by eliciting shared and individual memories, by showing up what has been forgotten or erased, by reintroducing this material to the flux of visibilities and the web of her narrative, Eloá Carvalho reaffirms the past through its existence: it speaks not of a museum, but of museums as visions shared amongst people; not of paintings, but of painting as an act and mode of conceiving of the world; not of art as an elitist vision, but of the role it can and should have in the shaping and recognition of a world in a constant state of transformation. If the account reinforces the idea that “every ideal starts out vague,” whatever it is, its continuity concludes that “it is human warmth that gives it substance and consistency.” Therein lies the testimony of her proposal and its fruition.


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Sob o véu, de Daniela Name 
MUV Gallery, Rio de Janeiro, Set 2015



Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.
Atribuída ao Livro dos Conselhos.
Epígrafe de Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago.


Um dos pontos de partida de Eloá Carvalho para criar Diante de outro branco foi o livro A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares. Outro foi a memória de sua avó, Lucy. Morando no interior do Rio de Janeiro, ela se comunicava com a neta através de cartões postais. Não eram cartões virgens: com poucos recursos na cidade pequena, Dona Lucy reaproveitava os postais que já haviam sido enviados para ela. Assim, ocultava a caligrafia de amigos e parentes com uma máscara de papel e escrevia um novo texto em cima. As paisagens de lugares diversos permaneciam intactas, mas Eloá perdia suas legendas, também ocultas pelo véu branco. Talvez tenha sido seu primeiro aprendizado sobre a importância de olhar para as imagens e a possibilidade de criar narrativas para elas. Talvez tenha sido o momento em que, como Morel, a artista ainda adormecida naquela menina começou a cultivar o desejo de tornar algumas imagens eternas.

As pinturas presentes na mostra foram criadas separadamente, mas formam um conjunto que destaca características importantes da obra de Eloá: sua capacidade de gerar diálogos internos entre os trabalhos, a relação com o cinema, as fricções entre o fazer pictórico, a fotografia e o desenho. A maioria das imagens vem de registros fotográficos do público de exposições. A artista se apropria desses arquivos e nos convida a olhar para aqueles que olham. Não sabemos exatamente para o que olham. Próximos dos personagens do pintor Caspar David Friedrich, estes seres de Eloá insinuam que há uma paisagem nos escapando para além dos limites da tela e nos mostrando que a pintura já não cabe em uma única janela. Nosso mirante é o olhar das pessoas que a artista pinta, e que se transformam em cúmplices para que alcancemos a paisagem que não vemos. É de lá que parecem vir e para lá que vão os pedaços de pernas e braços que não cabem no quadrado da tela; é para lá que olha a cabeça ruiva, rosto voltando para o chão que não existe; talvez haja vestígios deste “lá” no celular que vira espelho, girado pela mão. Como na epidemia que tira a visão dos habitantes de uma cidade em Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, ao velar as imagens Eloá destaca sua importância. O verbo “velar” adquire, aliás, toda a força de seu duplo sentido nesses trabalhos. Se Saramago chamou a cegueira de “treva branca”, descrevendo-a como uma opacidade tátil e pesada, a artista investe em densidades diferentes de tinta dessa cor, dando gradações à carga expressiva de sua pincelada e fazendo com que o branco também se revele. O branco de Eloá é parente das nuvens de Vermeer e Frans Post: também está grávido de azuis, rosas, amarelos e cinzas.

O título desta série, Eu não sou Roberto Carlos, foi tirado da frase dita por um dos primeiros retratados: apesar de reconhecer sua aparência, ele não compreendia os motivos da artista ao escolhê-lo. Um sujeito comum que não é rei (e nem o Rei) deveria ser pintado? Eloá responde que sim: em seu painel randômico, pessoas que ela às vezes nem conhece são retiradas do fluxo dos selfies e das postagens nas redes sociais para ganhar sobrevida além da reprodutibilidade exaustiva. Ela nos oferece aparições menos transparentes e deslizantes do que as imagens com que temos convivido. A regeneração de nossas retinas tão fatigadas vem da companhia dessa gente como a gente e da recorrência de objetos que são extensões do corpo e podem nos abrigar (guarda-chuvas), carregar o que importa para nós (mochilas) ou nos carregar para onde importa (bicicletas). Nos trabalhos recentes, um celular e fones de ouvido também são tratados a um só tempo como paisagem e inventores/veladores de paisagem.

Chamar estes retratos de “aparições” não é algo fortuito. Criar imagens é gerar fantasmas, tirando pessoas e coisas do mundo e fazendo com que morram um pouco, para que assim possam tangenciar outra existência. Dar a ver é o mesmo que dar a vida: a motivação de Morel também move Eloá. A imagem como aparição fica ainda mais evidente em um novo veio de pesquisa, seus desenhos feitos em lápis de cor branco sobre papel translúcido. A artista destaca silhuetas que evocam situações lúdicas e cria para elas uma moldura de traço propositalmente infantil. Há um quê de lanterna mágica nestes trabalhos. Diante deles, podemos levar a memória até a sombra de Peter Pan, que entra voando pela janela e passeia pelo quarto de Wendy e seus irmãos. A moldura branca, quase um véu de açúcar a contornar as figuras, deixa entrever como o processo de trabalho de Eloá é minucioso, sem abrir mão dos contornos afetivos. Escolher imagens é ser escolhido por elas, e isso é enfatizado pelo uso das silhuetas. Amplamente pesquisados por artistas como William Kentridge e Daniel Senise, elas são desenhos vazados, mas não vazios. Com suas características de negativo e de avesso da imagem, a silhueta aponta para um estado de ausência, para o que não está ao nosso alcance por completo, mas deve ser notado. No caso de Eloá, o jogo de transparência e opacidade dos materiais nos obriga a sair literalmente de lugar para que vejamos – ou ao menos meditemos sobre a possibilidade ver.

O grupo de trabalhos batizado de Landscapes propõe outros deslocamentos. Eloá se apropriou da atmosfera de A invenção de Morel e criou frases que mostram personagens vendo e sendo vistos. A caligrafia inventada, paisagem desenhada que aponta para outra paisagem, lembra ainda que as letras um dia foram imagens. Mais uma vez, a artista nos leva a perceber aquilo que não está materialmente apresentado. Suas palavras ocupam o lugar das coisas, exatamente como ocorre no caldo fervente que cria qualquer língua. Suas frases abrem ainda a possibilidade para a gênese de muitas cenas em nossa imaginação. Projetamos o texto para que, em certa medida, também nos tornemos pintores.

O desfecho de uma narrativa pode guardar aquilo que ela tem de mais importante. Também é feito de palavras o último trabalho que compõe a exposição, pedra fundamental de todo o conjunto. No tempo em que tudo se refaz, coisas que de tão brancas poderiam ser visíveis é uma dupla de desenhos que emula um cartão-postal. A frase-título está no verso, enquanto a frente não exibe nenhuma imagem, apenas uma grossa camada de tinta branca. Esta pele traz as marcas de algumas das imagens mais caras para a Eloá, aquelas vindas da infância, que não precisam ser mostradas, pois são sempre vistas do lado de dentro. Como entendeu bem o narrador apaixonado de A invenção de Morel, a vida pode ser o “depósito de várias mortes”. Estamos sempre trazendo à tona este nosso acervo sonâmbulo e fantasmagórico. Mas a vida, ao menos a vida das imagens, também pode duelar com a morte e até vencê-la. Tanto é assim que, décadas depois de receber os bilhetes remendados pela avó, Eloá finalmente criou sua resposta para Dona Lucy. Desvelando horizontes diante de outro branco, nós recebemos a mensagem por ela.



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Resenha para a revista Dasartes 39
Fernanda Lopes, março 2015

Terceiro Ato

Entrar na exposição Como se os olhos não servissem para ver de Eloá Carvalho na Galeria do Lago (RJ) é quase como encontrar um álbum de fotografias antigas em meio a uma arrumação de gavetas. Uma mistura de reconhecimento e estranhamento se apresenta na medida em que vamos passando uma a uma - enquanto parte dos elementos das imagens nos são totalmente familiares, outros nos parecem absolutamente estranhos. Se conseguimos lembrar quem são todos que aparecem em uma fotografia, por outro lado não sabemos mais onde ela foi tirada. Em Como se os olhos não servissem para ver o que temos são pistas, rastros, indícios do que é, ou poderia ser, o Palácio do Catete.  Palavras e imagens reunidas na exposição nos fazem descobrir ou redescobrir o Museu da República. Pelo olhar do outro - aqui, a artista e aqueles convidados por ela para contarem em cartas suas lembranças no museu - recuperamos o nosso próprio olhar, as nossas próprias memórias. Reconhecer é conhecer de novo e pela primeira vez, ao mesmo tempo. 

Eloá Carvalho é uma artista que sempre se interessou pela história, pela cena. Em seus trabalhos mais antigos, suas figuras já se apresentavam como personagens em meio a uma encenação, em ângulos e situações que pareciam ter sido tirados de um filme ou uma peça. No final de 2013, a artista apresentou Mise en scène na Galeria IBEU (RJ), que teve início com uma extensa pesquisa no acervo iconográfico da instituição e que pela primeira vez colocou seus "personagens" de fato em cena ao fazer com que as pinturas se instalassem no espaço do mundo real, se apropriando dele como parte da obra, misturando realidade e ficção. 

Como se os olhos não servissem para ver parece um terceiro ato desse pensamento. Aqui, pintura, desenho e palavra se misturam, tomando um espaço que antes era só nosso. Deixam o espaço ideal da tela para tomarem paredes, chão e teto, se misturarem com o mundo. E outro personagem acaba tomando a frente da cena. O espectador, a quem em um primeiro momento cabia o papel de observar, vai sendo cada vez mais levado para o centro da cena. A mostra se constrói também a partir do olhar do outro, das lembranças que acreditamos ter ou daquelas que vamos construindo ao revirar nossas gavetas de guardados.  


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Projetos da minha espera, de Mario Gioia
ZipUp (Zipper Galeria), São Paulo, mar 2015

L’Esquive

O observador pode passear seu olhar pelas telas e pelos desenhos da artista fluminense Eloá Carvalho em Projetos da Minha Espera e encontrar alguma tranquilidade e placidez (em especial, nesses dias tão tristemente agitados). Porém, tal percepção é bastante enganadora. Não por se tratar de um ‘truque’ visual-conceitual pretendido por ela que se destinaria à tal artifício, e sim por, olhando com atenção, ser possível constatar o resultado de uma produção consistente e que se movimenta com inquietude, em contínua transformação. E, passando apreensões mais apriorísticas, podemos chegar a uma leitura que se afasta da pacificação forçada que contamina discursivamente variados âmbitos da nossa experiência diária. A obra de Carvalho desordena, e muito.

O que pode confundir quem apenas busca harmonia e ponderação talvez seja a silenciosa configuração em que os protagonistas pictórico-gráficos transitam, em trabalhos de menor ostensividade cromática e com espaços pouco habitados, cheios de vazio e brancura. Afinal, onde estaria o caos desse tempo de circulação maximizada de imagens e informações? Por onde caminhariam os fragmentos dessa comunicação que parece sempre em congestão?
Pois bem. A perturbação pode vir do espaço-tempo que foge dos parâmetros lineares. Nas séries Quase Arquivo e Director’s Cut, por exemplo, as figuras que frequentam os onipresentes eventos de abertura de exposições são originárias de diversas épocas. Não poderiam habitar o mesmo lugar. Mas como se aquietar num ambiente em que personagens que parecem vir de um mix singular de filmes de Antonioni e fitas by Embrafilme também coabitam com ‘atores’ algo hipsters dos nossos enredos cotidianos, esses cada vez mais virtuais, em que personas sem fisicalidade ou avatares são considerados tão reais e próximos?

Ao mesmo tempo, pinturas como Projeto para Cena ao Longe têm características de funcionar como espelhos atípicos, fazendo com que uma escala 1:1 provoque o espectador, sugerindo que ele explore outros planos num desejado extracampo. Tais estratégias ajudam na composição do que a artista qualifica de paisagem “subjetiva” e “improvável” e criam fecundos diálogos entre o cinema, o fotográfico (por meio de conceitos como o enquadramento) e as artes visuais (enfatizando, com uma visada contemporânea, o próprio gênero da paisagem).

E perpassa na produção da artista uma espécie de olhar hesitante, encarado no bom sentido do termo. Na construção das cenas, os protagonistas quase nunca nos fitam _ há muitos perfis, perspectivas de soslaio. Elementos arquitetônicos como guarda-corpos e muros estão presentes,  a enfatizar a transitoriedade, em configurações espaciais de solidez tênue. Objetos cotidianos, como uma bicicleta ou uma mochila, ajudam em nossa identificação, mas, por outro lado, se afastam da concretude, em ambientes nos interstícios entre o onírico, o imaginário e o palpável. Atmosferas em desmanche, a salientar estados psicológicos de difícil precisão, mas de pungentes sensações. Imagens que vão embora, se aproximam, olham através, como uma misteriosa mulher, cujos traços são percebidos por meio do enigmático negrume que a absorve e a repele. Algo tão denso e essencial que serve como uma síntese da obra desassossegante de Eloá Carvalho.


English version
L’Esquive

The observer can browse through the screens and drawings of the fluminense artist Eloá Carvalho in Projetos da Minha Espera and find some tranquility and placidity (especially in such sadly agitated times). However, such perception is quite misleading. Not because it is her intended visual and conceptual 'trick' that would be used to such an artifice, but instead, through closer examination, because it is possible to verify the result of a consistent production which moves with disquietude, in continuous transformation. And after getting past a priori apprehensions, we can reach an interpretation that draws away from the forced pacification which discursively contaminates various areas of our daily experience. The work of Carvalho disorders -  a lot.

What may confuse those who seek only harmony and ponderation is the silent configuration in which the graphic-pictorial protagonists traverse, in works of lesser chromatic ostensibility and with sparsely inhabited spaces, full of emptiness and whiteness. After all, where would be the chaos of these times of maximized circulation of images and information? Where would roam the fragments of this communication that seems to always be congested?

Well then. The disturbance may come from the space-time that averts linear parameters. In the series Quase Arquivo and Director’s Cut, for example, the figures attending the ubiquitous exhibition opening events originate from various eras. They could not inhabit the same place. But how to rest in an environment where characters that seem to come from a unique mix of Antonioni's films and Embrafilme tapes, and to also cohabit with somewhat hipster 'actors' of our everyday lives – the latter  increasingly more virtual -  and where personas without physicality or avatars are considered to be so real and close?

At the same time, paintings such as Projeto para Cena ao Longe  have the characteristic of functioning as atypical mirrors, causing a scale of 1: 1 to tease the viewer, suggesting the exploration of other planes within a desired extra-field. Such strategies help in the composition of what the artist describes as "subjective" and "unlikely" landscapes, and create fruitful dialogues between cinema, the photographic (through concepts such as framing) and the visual arts (emphasizing, with a contemporary view, the landscape genre itself).

And the production of the artist is pervaded by a kind of hesitant look, in the positive sense. In the construction of the scenes, the protagonists almost never gaze at us - there are many profiles, lateral perspectives. Architectural elements such as railings and walls are present, emphasizing the transience, in spatial configurations of tenuous substance. Everyday objects such as a bicycle or a backpack, help us in our identification, but on the other hand, distance themselves from that which is concrete, in environments in the interstices between the oneiric, the imaginary and the palpable. Disolving atmospheres, emphasizing psychological states of difficult precision, but of pungent sensations. Images that go away, come closer, look through, as a mysterious woman, whose features are perceived by means of the enigmatic blackness that absorbs and repels her. Something so dense and essential that it serves as a synthesis of this poingnant work of  Eloá Carvalho.



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Como se os olhos não servissem para ver, de 
Isabel Portella
Galeria do Lago, Rio de Janeiro, fev 2015

Ao passar pelo Palácio Nova Friburgo, levantou os olhos para ele com o desejo do
costume, uma cobiça de possuí-lo, sem prever os altos destinos que o palácio viria a ter na República(...)
no Catete, passagem obrigada de toda a gente, que olharia para as grandes janelas, as grandes portas, as grandes águias no alto, de asas abertas (...)Santos imaginava os bronzes, mármores, luzes, flores, danças, carruagens, músicas, ceias... 
Machado de Assis, Esaú e Jacó


Olhos servem para olhar. Para ver é preciso abrir a alma e deixar que entre algo mais do que imagens, luzes e sombras. É preciso que toda nossa bagagem nos acompanhe nessa jornada; cada pequena lembrança, cada leitura, emoção ou desventura devem estar presentes. Só assim poderemos perceber detalhes que certamente passarão despercebidos para outros tantos observadores. O que vemos é um reflexo do que somos, do que já sentimos ou experimentamos.

Foi justamente pensando nessa diversidade, que a artista Eloá Carvalho se propôs a pesquisar opiniões e impressões de visitantes sobre o Palácio do Catete, o museu da República. Encantada, ela própria, com os elementos decorativos do prédio, com as minúcias, passou a visitar o palácio e os jardins históricos quase que diariamente. Desenhava o que a surpreendia e impressionava, e também escutava de amigos as lembranças de detalhes do local que permaneciam vivas em suas memórias. Ouviu por vezes que alguns, apesar da vontade, nunca haviam visitado o Museu. 

Surgiu então a ideia e Eloá propôs uma experiência. Os amigos que já conheciam o Palácio deveriam escrever uma carta relatando o que mais lhes agradara, os detalhes mais marcantes e imperdíveis. Os que não conheciam o local, ao receberem a carta, fariam uma visita e depois responderiam contando suas próprias impressões. 

O resultado foi empolgante e a artista selecionou várias opiniões que refletem diferentes modos de ver. Uma volta no tempo, um encontro com nobres num ambiente de ostentação, aromas sutis e salas de jantar repletas de finas porcelanas e comidas de dar água na boca são alguns aspectos ressaltados pelos amigos de Eloá. Recomendam andar sem pressa, olhar para cima, prestar atenção nos detalhes, no exagero da ornamentação, nos anjinhos desnudos da escada, na flor de lis.  Pedem cuidado porque alguns detalhes enganam a vista; falam de um jogo do fora e do dentro, da baronesa à janela e dos criados de bandeja na mão.  As grandes águias de asas abertas remetem aos urubus que habitam a memória de um dos leitores/escritores! Uma diversidade impressionante de propostas e de visões!

Como se os olhos não servissem para ver, exposição de Eloá Carvalho na Galeria do Lago, reúne os frutos da fascinante pesquisa. A literatura fez uso da linguagem para descrever o Palácio. Eloá serviu-se dos pincéis e lápis para contar sua história.  Vamos seguindo o fio pictórico de seus desenhos pelas várias possibilidades que vislumbramos - elementos decorativos do Palácio, traços em preto e branco, alguns mais detalhados que outros, mas sempre com a delicadeza da artista sensível e criativa que é Eloá Carvalho.

Tal como o personagem de Machado de Assis, o Santos, visualizamos “os bronzes, mármores, luzes, flores, danças, carruagens, músicas, ceias...” e, “como se os olhos não servissem para ver”, vemos tudo com a imaginação, com a alma. O olhar contemporâneo da artista nos possibilita recriar os espaços urbanos, a sociedade e as práticas culturais de um século que tantas marcas deixou.


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Mise en scène, de Ivair Reinaldim

Galeria Ibeu, Rio de Janeiro, nov 2013

O termo que dá título à exposição de Eloá Carvalho, se traduzido de modo literal, significa “colocado em cena”, e seu uso, ao migrar do teatro para o cinema, marca a crescente valorização da figura do diretor como aquele que organiza e controla a construção dramatúrgica do filme em todos os seus detalhes. Não que a artista tenha desenvolvido aqui um diálogo direto com o cinema – mesmo que alguns de seus trabalhos anteriores apresentem tais referências. O que fez foi assumir uma operatividade que em si pode ser aproximada da prática do “metteur en scène”.


Assim, o termo torna-se indício de como o olhar autoral da artista reconfigura e contextualiza personagens de diferentes características, feições e procedências históricas num espaço cênico comum, seja ele o da superfície do papel ou pintura ou mesmo o da Galeria de Arte do Ibeu. Sinaliza o arranjamento dos corpos e das coisas através de tais espaços, como também a dimensão mais ampla da encenação presente nesses elementos. Suas personagens encenam seus papéis: aqueles que acreditam desempenhar e aqueles que a artista as põe a representar.


O projeto aqui exposto teve início com uma extensa pesquisa no acervo iconográfico do Ibeu. Nesse arquivo, a artista selecionou suas personagens entre os registros fotográficos das diversas aberturas de exposição promovidas pelo Instituto, dos anos 1950 aos nossos dias. Em seguida, tais figuras foram desenhadas e recombinadas em novos conjuntos, encontrando-se parte desses desenhos acessíveis nesta mostra. Alguns deles, no entanto, continuaram a ser trabalhados por meio da pintura e, dispostos em novos contextos, ganharam maior densidade e corporeidade.

Vistas em conjunto, as imagens contidas nesses desenhos e pinturas representam um evento construído por camadas de tempo superpostas. Por um instante, todas essas personagens coexistem, mantêm-se presentes nesse espaço que habitaram em algum momento no passado. Instalados na Galeria do Ibeu, os trabalhos de Eloá Carvalho prolongam suas dimensões e nos convidam, como espectadores, a compartilhar do estado imersivo de suas figuras. Mas é preciso não nos deixar inebriar pela aparente naturalidade das poses. Na cena, nada é espontâneo.



4 apontamentos sobre Mise en Scène

1. Em L’année dernière à Marienbad (1961), Alain Resnais e Alain Robbe-Grillet reforçam a construção da narrativa fílmica através da sobreposição de diferentes camadas de tempo, apresentando-nos um presente mediado por aquilo que se constituía a memória possível de um encontro passado. Desse modo, o presente em Marienbad era percebido não apenas como um algo em si, mas por meio da inflexão entre um fato, que poderia ou não ter ocorrido, e a expectativa futura, o desejo de algo que pudesse ou não vir a acontecer, tornar-se real. A intenção não é confundir o espectador na sua busca por uma evidência ou comprovação incondicional daquele encontro, mas reforçar o quanto o tempo narrativo é construído mediante o cruzamento de diferentes subjetividades. Robbe-Grillet diria: “Não existe ano passado, e Marienbad não se encontra mais em nenhum mapa. Esse passado tampouco tem qualquer realidade fora do instante em que é evocado com tanta força; e quando enfim triunfa, torna-se simplesmente o presente, como se jamais tivesse deixado de ser.” Essa estrutura, de algum modo, encontra-se também em Mise en Scène: na aproximação das imagens selecionadas e trabalhadas por Eloá Carvalho e na ênfase sobre sua presentificação em um mesmo espaço. Assim, presente e passado passam a se confundir na ficção criada pela artista. Marienbad é a história de uma persuasão; Mise en Scène é a exposição enquanto cena. A Galeria de Arte do Ibeu, preenchida por suas personagens, guarda algo da imobilidade de Frederiskbad.

2. Seria igualmente possível aproximar o ato criador de Eloá Carvalho ao do argumento principal de A invenção de Morel (1940), livro de Adolfo Bioy Casares, centrado na criação de uma máquina capaz de criar reproduções humanas. Capturadas e transformadas em projeção de suas imagens, as personagens do livro foram desse modo eternizadas: viverão para sempre na ilha de Morel, repetindo os mesmos gestos, as mesmas falas, as mesmas poses. Passam a existir apenas naquele lugar e em função da estrutura que as mantêm “vivas”. Mediante o uso da reprodutibilidade, o dispositivo técnico possibilita a aproximação de pessoas temporal e espacialmente distantes umas das outras, fazendo com que passem a existir simultaneamente. Torna-se difícil distinguir realidade, imaginação, simulacro e alucinação. “Quando intelectos menos toscos se ocuparem de sua invenção, o homem escolherá um lugar apartado, agradável, reunirá as pessoas mais caras e perdurará num íntimo paraíso. Um mesmo jardim, caso as cenas a perdurar sejam gravadas em momentos distintos, alojará inumeráveis paraísos, cujas sociedades, ignorando-se entre si, funcionarão simultaneamente, sem colisões, quase nos mesmos lugares.” As personagens de Mise en Scène também foram transformadas em imagens, aprisionadas em seu próprio jogo cênico. Encenam suas histórias e aqui coexistem (ou aparentam coexistir), seja entre si ou mesmo com aqueles que com elas interagem, seus espectadores. A invenção de Eloá aprisiona suas imagens no lugar que um dia habitaram.

3. Contudo, não estamos diante apenas de imagens. Sua existência em Mise en Scène – após serem selecionadas de um arquivo fotográfico institucional – está condicionada pelas escolhas da artista, ora as reelaborando através do desenho, ora por meio da pintura. É preciso considerar então que “grafite” e “tinta óleo” fornecem novas propriedades a essas figuras. Inicialmente capturadas pelo aparelho fotográfico – a maior parte em preto e branco –, as imagens foram então “traduzidas” em desenho. Tanto a proximidade com o procedimento fotográfico (mediante apropriação de imagens de arquivo) quanto a opção pela escala de cinzas do grafite (diferente da escala química de cores da fotografia) aproximam a artista de algumas ideias de Vilém Flusser. Em Filosofia da caixa preta (1983), por exemplo, o autor argumenta: “Não pode haver, no mundo lá fora, cenas em preto e branco. Isto porque o preto e o branco são situações ‘ideais’, situações-limite. O branco é presença total de todas as vibrações luminosas; o preto é a ausência total. O preto e o branco são conceitos que fazem parte de uma determinada teoria da Ótica. De maneira que cenas em preto e branco não existem.” As figuras de Mise en Scène existem dentro dos limites do PB. Mas cabe ressaltar que Eloá Carvalho recorre, embasada também em conceituações, aos chamados “cinzas cromáticos”, resultantes de misturas e procedimentos caros às técnicas da pintura à óleo. A realidade expressa nesses trabalhos é fruto de uma visão conceitual do mundo, anterior a qualquer ato ou ação operativa.

4. Pela primeira vez as figuras pintadas por Eloá Carvalho viraram-se completamente em direção ao espectador, dando a ver sua tez acinzentada. Se antes suas imagens eram representadas quase sempre de costas, eventualmente de perfil, com essa decisão, não só a fisionomia, como também o encarnado passaram a ser aspectos a serem considerados de modo mais intenso pela artista. Em A pintura encarnada (1985) Georges Didi-Huberman desenvolve um pensamento da (en)carnação em arte, tratando a questão como espécie de limite da pintura, de transição entre o visível (imagem) e o tangível (pigmento), entre a dimensão óptica e o aspecto háptico. “O encarnado visa, pois, ser duplamente notável: pelo que sugere de uma subjacência (…) e pelo que impõe de uma superfície levada ao extremo, como o aço de um espelho polido, mas transparente (…). Esse colorido por excelência está, pois, sob o influxo de um imperativo categórico do entremeio: entre superfície e profundidade.” Assim, o encarnado é aquilo que é visto na superfície – a “pele” – mas que também evoca a profundidade – o “interior” do corpo, um meio pelo qual “a pintura pode se imaginar como corpo e como sujeito”. A cor é um elemento que se dá a perceber não apenas como pura qualidade da superfície, mas como índice de uma profundeza transparente. Certas figuras de Mise en Scène são personagens apenas se vistas enquanto imagens; são, em última instância, imagens “encarnadas”, isto é, corporificadas por e na pintura.


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Das coisas que vimos pelo caminho, de Humberto Farias
CCPCM, Niterói, jul 2010

"Em seu trabalho, Eloá desenvolve uma pesquisa através da pintura e do desenho – suas personagens/silhuetas se fundem por meio de técnicas pictóricas, diluídas pelas aguadas ou encorpadas pelos volumes de empaste, tornando-se a própria paisagem, "o outro como paisagem". Essas imagens pertencem às suas memórias pessoais ou são apropriações de narrativas que se relacionam com seu universo íntimo. O processo de captação dessas imagens parte da fotografia, depois do que são manipuladas e transpostas para as telas ou para papel; é nesse momento que a artista oculta, vela suas paisagens e as negocia com o fruidor – possibilita que cada indivíduo veja, ou crie, a sua paisagem, de forma que ela também, a paisagem, de individual se torne universal.


A neutralidade se revela nas obras de Eloá através da cor, e desta maneira sua obra está aberta para a "possível paisagem" do repertório de cada observador, instaurando possibilidades poéticas e encontros".

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