Exposição | Diante de outro branco

Diante de outro branco

Exposição individual na MUV Gallery, RJ
03/09 a 06/11/2015
curadoria Daniela Name

fotos: Mario Grisolli




























Sob o véu


Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.
Atribuída ao Livro dos Conselhos.
Epígrafe de Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago.


Um dos pontos de partida de Eloá Carvalho para criar Diante de outro branco foi o livro A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares. Outro foi a memória de sua avó, Lucy. Morando no interior do Rio de Janeiro, ela se comunicava com a neta através de cartões postais. Não eram cartões virgens: com poucos recursos na cidade pequena, Dona Lucy reaproveitava os postais que já haviam sido enviados para ela. Assim, ocultava a caligrafia de amigos e parentes com uma máscara de papel e escrevia um novo texto em cima. As paisagens de lugares diversos permaneciam intactas, mas Eloá perdia suas legendas, também ocultas pelo véu branco. Talvez tenha sido seu primeiro aprendizado sobre a importância de olhar para as imagens e a possibilidade de criar narrativas para elas. Talvez tenha sido o momento em que, como Morel, a artista ainda adormecida naquela menina começou a cultivar o desejo de tornar algumas imagens eternas.

As pinturas presentes na mostra foram criadas separadamente, mas formam um conjunto que destaca características importantes da obra de Eloá: sua capacidade de gerar diálogos internos entre os trabalhos, a relação com o cinema, as fricções entre o fazer pictórico, a fotografia e o desenho. A maioria das imagens vem de registros fotográficos do público de exposições. A artista se apropria desses arquivos e nos convida a olhar para aqueles que olham. Não sabemos exatamente para o que olham. Próximos dos personagens do pintor Caspar David Friedrich, estes seres de Eloá insinuam que há uma paisagem nos escapando para além dos limites da tela e nos mostrando que a pintura já não cabe em uma única janela. Nosso mirante é o olhar das pessoas que a artista pinta, e que se transformam em cúmplices para que alcancemos a paisagem que não vemos. É de lá que parecem vir e para lá que vão os pedaços de pernas e braços que não cabem no quadrado da tela; é para lá que olha a cabeça ruiva, rosto voltando para o chão que não existe; talvez haja vestígios deste “lá” no celular que vira espelho, girado pela mão. Como na epidemia que tira a visão dos habitantes de uma cidade em Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, ao velar as imagens Eloá destaca sua importância. O verbo “velar” adquire, aliás, toda a força de seu duplo sentido nesses trabalhos. Se Saramago chamou a cegueira de “treva branca”, descrevendo-a como uma opacidade tátil e pesada, a artista investe em densidades diferentes de tinta dessa cor, dando gradações à carga expressiva de sua pincelada e fazendo com que o branco também se revele. O branco de Eloá é parente das nuvens de Vermeer e Frans Post: também está grávido de azuis, rosas, amarelos e cinzas.

O título desta série, Eu não sou Roberto Carlos, foi tirado da frase dita por um dos primeiros retratados: apesar de reconhecer sua aparência, ele não compreendia os motivos da artista ao escolhê-lo. Um sujeito comum que não é rei (e nem o Rei) deveria ser pintado? Eloá responde que sim: em seu painel randômico, pessoas que ela às vezes nem conhece são retiradas do fluxo dos selfies e das postagens nas redes sociais para ganhar sobrevida além da reprodutibilidade exaustiva. Ela nos oferece aparições menos transparentes e deslizantes do que as imagens com que temos convivido. A regeneração de nossas retinas tão fatigadas vem da companhia dessa gente como a gente e da recorrência de objetos que são extensões do corpo e podem nos abrigar (guarda-chuvas), carregar o que importa para nós (mochilas) ou nos carregar para onde importa (bicicletas). Nos trabalhos recentes, um celular e fones de ouvido também são tratados a um só tempo como paisagem e inventores/veladores de paisagem.

Chamar estes retratos de “aparições” não é algo fortuito. Criar imagens é gerar fantasmas, tirando pessoas e coisas do mundo e fazendo com que morram um pouco, para que assim possam tangenciar outra existência. Dar a ver é o mesmo que dar a vida: a motivação de Morel também move Eloá. A imagem como aparição fica ainda mais evidente em um novo veio de pesquisa, seus desenhos feitos em lápis de cor branco sobre papel translúcido. A artista destaca silhuetas que evocam situações lúdicas e cria para elas uma moldura de traço propositalmente infantil. Há um quê de lanterna mágica nestes trabalhos. Diante deles, podemos levar a memória até a sombra de Peter Pan, que entra voando pela janela e passeia pelo quarto de Wendy e seus irmãos. A moldura branca, quase um véu de açúcar a contornar as figuras, deixa entrever como o processo de trabalho de Eloá é minucioso, sem abrir mão dos contornos afetivos. Escolher imagens é ser escolhido por elas, e isso é enfatizado pelo uso das silhuetas. Amplamente pesquisados por artistas como William Kentridge e Daniel Senise, elas são desenhos vazados, mas não vazios. Com suas características de negativo e de avesso da imagem, a silhueta aponta para um estado de ausência, para o que não está ao nosso alcance por completo, mas deve ser notado. No caso de Eloá, o jogo de transparência e opacidade dos materiais nos obriga a sair literalmente de lugar para que vejamos – ou ao menos meditemos sobre a possibilidade ver.

O grupo de trabalhos batizado de Landscapes propõe outros deslocamentos. Eloá se apropriou da atmosfera de A invenção de Morel e criou frases que mostram personagens vendo e sendo vistos. A caligrafia inventada, paisagem desenhada que aponta para outra paisagem, lembra ainda que as letras um dia foram imagens. Mais uma vez, a artista nos leva a perceber aquilo que não está materialmente apresentado. Suas palavras ocupam o lugar das coisas, exatamente como ocorre no caldo fervente que cria qualquer língua. Suas frases abrem ainda a possibilidade para a gênese de muitas cenas em nossa imaginação. Projetamos o texto para que, em certa medida, também nos tornemos pintores.

O desfecho de uma narrativa pode guardar aquilo que ela tem de mais importante. Também é feito de palavras o último trabalho que compõe a exposição, pedra fundamental de todo o conjunto. No tempo em que tudo se refaz, coisas que de tão brancas poderiam ser visíveis é uma dupla de desenhos que emula um cartão-postal. A frase-título está no verso, enquanto a frente não exibe nenhuma imagem, apenas uma grossa camada de tinta branca. Esta pele traz as marcas de algumas das imagens mais caras para a Eloá, aquelas vindas da infância, que não precisam ser mostradas, pois são sempre vistas do lado de dentro. Como entendeu bem o narrador apaixonado de A invenção de Morel, a vida pode ser o “depósito de várias mortes”. Estamos sempre trazendo à tona este nosso acervo sonâmbulo e fantasmagórico. Mas a vida, ao menos a vida das imagens, também pode duelar com a morte e até vencê-la. Tanto é assim que, décadas depois de receber os bilhetes remendados pela avó, Eloá finalmente criou sua resposta para Dona Lucy. Desvelando horizontes diante de outro branco, nós recebemos a mensagem por ela. 

Daniela Name, 2015